sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A VIDA NOS MUNDOS INVISÍVEIS -BLOCO IV

VIII. Planos Para Trabalhos Futuros


Uma curta caminhada nos levou a um prédio retangular que, segundo fomos informados, era o departamento da ciência. Tanto minha bela companheira como eu estávamos perplexos, sem saber de que forma a ciência, tal como a compreendemos na terra, poderia ter lugar no mundo espi­ritual. Entretanto, logo iríamos aprender muitas coisas, e a principal delas é que o mundo deve agradecer aos espíritos todas as principais descobertas científicas que têm sido feitas através dos séculos.
Os laboratórios daqui estão muitas dezenas de anos mais adiantados do que os da terra. E levará anos antes que muitas descobertas revolucionárias possam ser enviadas para a terra, por causa do seu insuficiente progresso.
Nem Rute nem eu tínhamos muita inclinação para ciência ou engenharia, e Edwin, conhecedor de nossos gostos, propôs que dedicássemos apenas uns momentos a esta seção.
Aqui todos os campos de investigação científica, e de engenharia, estudo e descobertas, são incentivados e podiam-se ver também muitos daqueles homens cujos nomes se tornaram famosos, e que, passando a espíritos continuaram suas ati­vidades com os colegas de ciência, e desta vez manejando completas e imensas fontes de recursos. Neste edifício po­dem eles resolver os mistérios que os intrigavam na terra. E não existem mais coisas desagradáveis, como a rivalidade pessoal. Não precisam mais fazer nome profissional e muitas desvantagens materiais são abandonadas para sempre. Segue-se que com tal reunião de sábios, com tais recursos à sua disposição, os resultados devem ser evidentemente grandes. Em idades passadas todas as descobertas que marcaram época vieram do mundo espiritual. De si próprio, em carne e osso, o homem pode fazer muito pouco. Muita gente se contenta em considerar o mundo auto-suficiente. Mas não o é! O cientista é fundamentalmente um homem de visão; ela pode ser limitada mas existe, não obstante. E nossos próprios cientistas do espírito podem  e o fazem — impressionar seus colegas com o fruto de suas investi­gações. Nos casos em que  dois homens trabalhando no mesmo problema, aquele que  é espírito estará muito mais adiantado que o seu confrade ainda da terra. Uma sugestão do primeiro é freqüentemente o bastante para pôr o segundo na pista certa, e o resultado é uma descoberta, para benefício da Humanidade.
Contudo, se em muitas circunstâncias a Humanidade é tão favorecida, em muitas outras, dores e tribulações lhe advêm, pela perversão diabólica daquelas descobertas. Todas foram enviadas do mundo espiritual para vantagem e pro­gresso do homem. Se, porém, mentes pervertidas usam essas mesmas descobertas para a destruição do homem este só a si mesmo deve culpar. É por isso que afirmei que a terra ainda não progrediu o suficiente para receber mais algumas dessas esplêndidas invenções aqui aperfeiçoadas. Estão prontas a serem usadas, mas se fossem enviadas à terra em seu atual estado de espírito, elas seriam deturpadas por pessoas ines-crupulosas.
O povo da terra tem obrigação de cuidar que os mo­dernos inventos sejam empregados unicamente para seu bem espiritual e material. Quando chegar a hora em que verda­deiro progresso espiritual for alcançado, então, o plano ter­restre pode esperar uma avalanche de novas invenções e descobertas, proveniente dos engenheiros e cientistas do mundo do espírito. Mas a terra tem um longo e doloroso caminho a trilhar antes dessa hora. Enquanto isso, o trabalho dos nossos cientistas continua.
Nós, do espírito, não necessitamos das muitas invenções do plano terrestre. Creio já ter dito que nossas leis são total­mente diversas das do mundo. Não achamos utilidade para as invenções que aumentarão a velocidade de locomoção. Nosso próprio método de transporte é tão rápido quanto o pensa­mento. Não temos necessidade de poupar a vida, porque somos indestrutíveis. Não temos necessidade de centenas de in­venções que tornam a vida mais fácil, mais segura, mais confortável e aprazível, porque a nossa vida já é tudo isso, e mais ainda. Mas neste templo da ciência, muitos e muitos homens devotados estavam trabalhando para o melhoramento do plano terrestre, por meio de suas pesquisas, e lamentavam que nem tudo ainda pudesse ser dado à terra por não ser seguro fazê-lo.
Foi-nos permitido ver o progresso que tem sido feito nos transportes, e ficamos atônitos ante o adiantamento que se tem alcançado. Mas isso não é nada, comparado com o que está para vir. Quando o homem exerce sua vontade na direção certa, não  limites para os enormes benefícios que ganhará em progresso material, mas este precisa caminhar a par com o progresso espiritual.
E até então não será permitido que eles possuam as inúmeras invenções prontas para serem enviadas.
Em geral as pessoas da terra são muito teimosas. Ressen­tem-se de qualquer invasão em seus terrenos, ou naquilo que presunçosamente chamam suas reservas. Quando qual­quer pesquisa de nossos cientistas é comunicada à terra, nunca pretendemos que ela seja monopolizada por alguns, com a exclusão de todos os outros. Os que assim fizeram terão de pagar um alto preço por este breve período de prospe­ridade. Nem se pretendeu também que os dois mundos — o nosso e o vosso  ficassem como estão agora, tão distantes em contato e idéias. Dia virá em que os nossos dois mundos serão intimamente entrelaçados, quando a comunicação entre ambos for um fato corriqueiro da vida, e quando a grande riqueza de recursos do mundo espiritual estiver aberta ao mundo terreno, para uso e benefício de toda a raça humana.
A visão de tanta atividade por parte de meus compa­nheiros de reino, tinha-me feito pensar a respeito de meu próprio futuro, e que forma tomaria. Não tinha ainda opinião definida sobre o assunto, por isso expus minha dificuldade a Edwin. Rute, ao que parece, estava preocupada com o mesmo problema, sentíamo-nos, ambos, pela primeira vez desde a chegada, um pouco inquietos. Nosso velho amigo não ficou nada surpreso por nos ver dessa forma. Era uma sensação comum a todos, mais tarde ou mais cedo, o anseio de estar fazendo algo para o bem do próximo. Edwin assegurou-nos que continuaríamos em nossas explorações inde­finidamente se assim o desejássemos, e que ninguém criticaria ou comentaria as nossas ações. Seria tratado como assunto de nosso único interesse.  Sentíamos, porém, que gostaríamos

de resolver a questão do nosso futuro trabalho, e apelamos para a orientação do nosso bom amigo. Sugeriu êle que fôssemos aos limites dos reinos superiores, onde, deveis estar lembrados, êle próprio havia declarado ser possível resolver esse assunto. Assim deixamos o edifício da ciência e nos achamos nos arredores do nosso reino.
Fomos conduzidos a uma belíssima casa, que pela apa­rência era muito mais iluminada do que as outras situadas mais para o interior. A atmosfera era mais rarefeita e creio que está­vamos mais ou menos no mesmo lugar da nossa primeira visita aos limites. Edwin conduziu-nos para dentro, com toda a liberdade, e nos deu as boas-vindas.
Assim que entrei compreendi instintivamente que êle nos levara à sua própria casa. Ê estranho mas nunca havíamos perguntado onde era e êle propositadamente manteve nossas mentes afastadas desse assunto. Rute ficou encantada com tudo o que viu e ralhou com êle por não nos ter falado dela mais cedo. Era uma construção inteiramente de pedra, e apesar de ser meio nua à vista, emanava certa amizade de cada canto. As salas não eram grandes, mas apropriadas às necessidades de Edwin. Havia muitas cadeiras confortáveis e estantes de livros bem fornecidas. "Mas a sensação de calma e paz que dela se recebia é que nos chamou a atenção.
Edwin fêz-nos sentar e ficar à vontade. Não havia pressa e podíamos discutir o nosso problema com calma.  de começo admiti francamente não ter idéia do que poderia fazer. Enquanto na terra tinha tido sorte de seguir minhas inclinações, e por conseguinte era muito ocupado. Mas o meu trabalho terminara — pelo menos num aspecto — quando minha vida terminou. Edwin propôs então se eu gostaria de me unir a êle em seu trabalho relacionado com os recem--chegados que, como nós, se achavam incapazes ainda de compreender a verdade da mudança por que tinham passado, e da irrealidade de tanta coisa de suas religiões.
Apesar de gostar muito da proposta de meu amigo não me sentia competente para realizar tal trabalho, | ao que
Edwin refutou minhas objeções. Eu trabalharia com êle, pelo menos no começo, e quando me acostumasse ao trabalho, poderia continuar sozinho se quisesse. Falando com expe­riência, Edwin disse que duas ou mais pessoas  e aqui lançou o olhar para Rute  podiam ser de mais ajuda a um indivíduo do que este trabalhando completamente só. O peso dos números parecia exercer grande poder de convicção sobre aqueles que se mostrassem particularmente teimosos em apegar-se às suas convicções terrenas. Uma vez que Edwin achava que eu lhe seria útil, tive prazer em unir minhas forças às deles. Rute ofereceu-se também para trabalhar com êle, dependendo é claro de^sua aprovação. Havia muita coisa, disse Edwin ao aceitar, que uma moça pode fazer, e nós três trabalhando em tão completa harmonia e amizade, poderíamos realizar bastante. Fiquei contente que Rute se unisse a nós, visto que assim nosso feliz grupo não seria desfeito.
Havia, entretanto, outro assunto em minha mente, e referia-se a um livro especial que desejaria não ter escrito na terra. Não que a idéia dele me tornasse infeliz, mas queria livrar-me dela. Sem dúvida que o meu novo trabalho me traria eventualmente aquela completa paz de espírito, mas ainda assim gostaria de tratar do assunto de uma maneira mais direta. Edwin sabia o que eu estava querendo, e lem­brou-me o que antes  havia dito a respeito das dificuldades de comunicação com a terra. Mas êle também havia men­cionado que podíamos pedir orientação ao plano mais elevado: Se eu ainda quisesse tentar a comunicação poderíamos pedir conselhos agora, e assim acomodar a questão do meu trabalho no futuro.
Edwin deixou-nos então e retirou-se para outro aposento. Mal tinha conversado um pouco com Rute, quando êle voltou acompanhado de um homem cujo aspecto logo me fez com­preender que tinha vindo de um plano mais elevado, em resposta ao chamado de Edwin. Não parecia nosso com­patriota, e, de fato, mais tarde vim a saber que era egípcio. Falava a nossa língua perfeitamente.   Edwin apresentou-nos

e explicou o meu desejo e as possíveis dificuldades em rea­lizá-lo.
Nosso visitante tinha forte personalidade, e dava uma impressão de calma e placidez.
Sentamo-nos confortavelmente e o egípcio fez algumas considerações. Se, disse ele, eu acreditava firmemente que voltando ao plano terrestre para falar, pudesse remediar essa situação que me causava remorsos, então ele faria tudo para me auxiliar neste empreendimento. Só me seria possível, entretanto, fazer o que queria, dentro de alguns anos. Nesse ínterim eu devia aceitar apenas a sua afirmação de que um dia eu me poderia comunicar, e aceitei a promessa. Se tivesse paciência, tudo seria como desejava. Eu deveria deixar o assunto em suas mãos e tudo correria bem. O tempo — para usar uma expressão da terra — logo passaria, e certos acontecimentos, enquanto isso, abririam mais ca­minho e forneceriam a ambicionada oportunidade.
Deveis vos lembrar que eu estava querendo desfazer algo que desejava nunca ter feito. Era uma tarefa que não podia ser realizada num momento. O que escrevera nunca poderia apagar, mas poderia aliviar a minha mente, dizendo a verdade como a conheço agora àqueles ainda no plano terrestre.
O bondoso egípcio ergueu-se e apertou-nos as mãos. Felicitou-nos pela maneira como nos acostumáramos às novas condições de vida, desejou-nos alegria em nosso novo tra­balho, e finalmente repetiu-me a promessa de que meus desejos íntimos seriam realizados. Tentei expressar minha gratidão pelo seu auxílio, mas nem me quis ouvir e com um aceno de mão, partiu. Ainda continuamos discutindo nossos planos, que eu desejava logo iniciar.
Não se deve julgar que fazíamos parte de uma campanha para converter as pessoas, no sentido que os terrenos dão a essa palavra. Longe disso. Não interferimos nas crenças de cada um, nem em seus pontos de vista: só damos nossas opiniões quando pedidas ou quando vemos que podem ser de alguma utilidade.   Nem gastamos o nosso tempo por aí a

evangelizar as pessoas. Mas chega uma hora em que um desassossego espiritual se manifesta no homem cuja alma esteve comprimida e restringida por idéias erradas, de tal forma, que êle se  na contingência de se voltar para o caminho certo.
Muitas pessoas não se conformam com o fato de que, ao passarem da terra para cá, sofreram a morte do corpo físico. Resolutamente não querem acreditar que são o que no mundo chamam de mortos. Sentem vagamente que houve alguma mu­dança, mas em que consiste, não sabem. Alguns, depois de ex­plicações  e até demonstrações  chegam a avaliar o que realmente aconteceu, outros são teimosos e  se convencem depois de prolongados argumentos. Neste último caso somos às vezes obrigados a abandonar essas almas por algum tempo, para permitir-lhes uma ligeira contemplação do próprio ca­minho. Sabemos que seremos imediatamente procurados, assim que sentirem o poder dos nossos argumentos. Em muitos aspectos é trabalho cansativo, apesar de eu usar a palavra cansativo em seu sentido terreno.
Rute e eu estávamos mais do que gratos a Edwin pela sua ajuda em nossos casos, e eu, também ao egípcio, pela excelente perspectiva de me comunicar com a terra. Em vista de nossas decisões de cooperar com Edwin em seu trabalho, ele sugeriu que, como havíamos visto um pouco — e muito pouco até  do nosso reino, poderíamos agora provei­tosamente fazer uma visita aos reinos sombrios. Rute e eu concordamos, acrescentando que tínhamos agora suficiente autoconfiança para suportar qualquer coisa de natureza desa­gradável que nos fosse mostrada. Estaríamos, é claro, sob a imediata proteção e guia do nosso velho amigo. É excusado dizer que sem ela não tentaríamos ir, mesmo que nos fosse permitido.
Deixamos a bela casa de Edwin, atravessamos rapida­mente o nosso próprio reino, e de novo nos achamos nas fronteiras dos reinos inferiores. Edwin nos avisou que senti­ríamos aquela sensação de frio, mas com algum esforço po­díamos expeli-la.   Colocou-se entre nós, e Rute e eu nos


apoiamos em seus braços. Êle se voltou para nos olhar, e ficou aparentemente satisfeito com o que viu. Ao olhar para Rute notei que suas vestes, bem como as de Edwin, haviam tomado uma tonalidade cinza, e vi também que as minhas tinham passado por igual alteração. Isto nos deixou perplexos, mas o nosso amigo explicou que este esmaecer de cores era apenas uma lei natural, e não significava que perdêssemos o que já havíamos ganho. Essa lei era para que não chamás­semos a atenção em lugares estranhos, nem levássemos a luz do nosso reino para aqueles planos obscuros, onde poderia cegar os seus habitantes.
Caminhávamos ao longo de terreno árido. A terra era dura e o verde das árvores desaparecera. O céu era sombrio e plúmbeo, e a temperatura tinha caído consideravelmente, mas podíamos sentir um calor interno, que a combatia. Diante de nós, víamos apenas uma grande massa de neblina, que se adensava cada vez mais à medida que avançávamos, até que nos sentimos envolvidos por ela. Rodopiava à nossa volta e parecia esmagar-nos. De repente surgiu da neblina uma figura, que avançou em nossa direção. Ao reconhecer Edwin, acolheu-o com cordialidade, e este nos apresentou, contando das nossas intenções. Êle disse que se uniria a nós e talvez nos fosse de alguma utilidade, e aceitamos pronta­mente a oferta. Retomamos a jornada e depois de passarmos novamente pelo nevoeiro, este começou a clarear um pouco e por fim desvaneceu-se. Podíamos agora ver claramente o nosso novo ambiente. A paisagem era extremamente árida, com apenas uma habitação aqui e acolá, e assim mesmo de ínfima categoria. Ao nos aproximarmos de uma delas, pudemos examiná-la. Era pequena e baixa, inteiramente desprovida de ornamentos e pouco convidativa. Tinha até certo aspecto sinistro, apesar de sua simplicidade, e parecia nos repelir à medida que nos aproximávamos. Não havia sinal de vida nas janelas ou ao redor dela. Não havia jardins em suas adjacências; ela existia por si só, solitária e tristonha. Edwin e o nosso novo amigo evidentemente conheciam bem o seu morador, porque ao chegar à porta da frente, Edwin deu

uma rápida batida e, sem esperar resposta, entrou, fazendo-nos sinal para o seguirmos. Ao fazê-lo, achamo-nos na mais pobre espécie de moradia. Pouca mobília, ve essa de ínfima categoria. Dir-se-ia à primeira vista que a pobreza reinava aqui, e qualquer pessoa ficaria naturalmente pena­lizada e inclinada a oferecer auxílio. Mas aos nossos olhos a pobreza era da alma, e a esqualidez, do espírito; e apesar de causar piedade, era uma piedade de outra espécie, para a qual o auxílio material de nada adianta. O frio parecia maior ainda, lá dentro, e nos disseram que êle provinha do próprio dono da casa.
Passamos a um quarto dos fundos e encontramos o seu único ocupante sentado numa cadeira. Não fez menção de se levantar ou nos dar as boas-vindas. Rute e eu ficamos para trás enquanto os outros dois se adiantavam para falar ao nosso pouco acolhedor anfitrião. Era um homem de meia-idade. Tinha um certo quê de prosperidade em deca­dência e as roupas que usava eram mal cuidadas. Recebeu a mim e a Rute de sobrecenho carregado e não falou ime­diatamente, mas quando o fez, foi para esbravejar conosco incoerentemente e consegui compreender que se julgava vítima de uma injustiça. Edwin disse-lhe cruamente que era tolice, porque não há injustiça no mundo do espírito. Uma argu­mentação acalorada se seguiu, ou pelo menos por parte dele, visto que Edwin conservou-se calmo e ponderado e na ver­dade maravilhosamente bondoso. Muitas vezes ele olhou para Rute, cujo rosto suave parecia iluminar o quarto sombrio, e eu também dirigi meu olhar para ela, que agarrada ao meu braço, se mostrava imperturbável.
Por fim êle se acalmou e pareceu mais tratável, man­tendo com Edwin uma conversa particular. Por fim disse a Edwin que iria pensar no assunto, e que se êle o quisesse visitar outra vez, com seus amigos, 'podia fazê-lo. Ao dizer isso ergueu-se de sua cadeira, acompanhou-nos até a porta e reparei que estava quase afável. Era como se estivesse relutando em se tornar cortês. Ficou à porta nos observando até nos perder de vista.

Edwin parecia contente com a visita e nos deu alguns particulares a respeito desse estranho personagem.                                                  Fora um homem bem sucedido nos negócios, e era espírito havia  alguns anos. Não pensava em mais nada a não ser nos negócios, e sempre achou que qualquer meio justi­ficava seus fins, contanto que fossem legais. Era impiedoso com os outros e dava à eficiência a estatura de um deus. Em sua casa tudo e todos eram-lhe subservientes. Dava genero­samente esmolas quando disso era provável retirar alguma vantagem e crédito. Apoiava sua religião e sua igreja com vigor, regularidade e fervor. Sentia-se um ornamento da igreja e era muito estimado por seus correligionários. Ajudava na construção, e uma capela foi batizada com o nome do seu doador. Mas pelo que Edwin pôde aquilatar, nunca tinha praticado uma ação decente e desinteressada em toda a sua vida.
E agora suas lamentações eram que, depois de ter tido vida tão exemplar — a seus olhos — fosse condenado a am­biente tão esquálido. Recusava-se a reconhecer que êle próprio se condenara, e não podia culpar ninguém, a não ser êle mesmo.
Queixava-se de que a Igreja o enganara, visto que sua generosidade fora aceita, e acreditava por isso que seus dona­tivos pesariam na balança do Além. Não podia perceber que o que importa é o motivo, e que um estado de espírito feliz não pode ser comprado. Um pequeno serviço, volun­tária e generosamente feito por um mortal, constrói um maior edifício em espírito, à glória de Deus, do que grandes somas gastas em argamassa e pedra clericais erigidas à glória do homem.
O atual estado de espírito daquele homem era a ira, tanto maior porque nunca lhe havia sido negado nada na terra. Não estava acostumado a circunstâncias tão ínfimas como aquelas em que vivia. Suas dificuldades eram acrescidas pela circunstância de não saber a quem culpar. Esperando uma alta recompensa, tinha sido lançado às profundezas. Não tinha feito verdadeiros amigos.   Parecia não haver aconselhar. Edwin havia tentado argumentar, mas de nada adiantara. Recebia poucas visitas, porque as repelia, e apesar de Edwin o ir ver freqüentemente, sua atitude era sempre a mesma — sólida aderência ao senso de injustiça.
Mas desde a última visita, na companhia de nós três, já havia alguns sintomas de uma mudança próxima. A prin­cípio não eram evidentes, mas ao aproximar-se o fim de nossa visita êle tinha dado mostra de ceder nessa atitude. E Edwin tinha a certeza que era mais devido à presença de Rute do que aos seus argumentos. Acreditava firmemente que se o fôssemos ver no caminho dé volta das nossas explo­rações, já o acharíamos em disposição diferente. Estava ainda relutante em admitir que a culpa era sua, mas a perseverança faz maravilhas.
Rute ficara naturalmente contente por ser tão cedo, de alguma utilidade, apesar de afirmar que se alguma coisa fizera, fora a de ser simples espectadora! Edwin porém lhe fêz ver que, se não fizera alguma ação externa, mostrara entre­tanto uma sincera piedade e simpatia por aquele homem infeliz. Isso explicava os freqüentes olhares dele em sua direção. Sentira sua consideração e isso lhe fizera bem, embora não o soubesse ainda.
Este foi o nosso primeiro contato com os desafortunados das esferas inferiores, e me estendi um pouco nos pormenores. Fi-lo porque foi uma espécie de introdução para o nosso futuro trabalho. Por enquanto, entretanto, nada deveríamos fazer nesses planos além de observações.
Nós quatro retornamos à nossa jornada. Não havia caminho para se andar, e o solo estava se tornando de for­mação rochosa. A luz desaparecia velozmente de um céu pesado e negro. Não havia vivalma, nem casas, nem sinais de vida. Os arredores todos estavam vazios, e incolores, e parecíamos vagar num outro mundo. Mal podíamos ver, à nossa frente, algo com a aparência de casas, e para lá nos encaminhamos.

 O terreno era agora de rochas e nada mais, e viam-se aqui e acolá pessoas sentadas, de cabeça baixa, aparente­mente inanimadas, mas na realidade mergulhadas em deses­pero e tristeza. Não reparavam em nós ao passarmos, e logo alcançamos as habitações divisadas de longe.

IX.  Os Domínios Sombrios

A certa distância podia-se notar que aquelas habitações não passavam de cortiços. Era uma desolação vê-las, e mais ainda era pensar que elas eram os frutos da vida dos homens sobre a terra. Não entramos em nenhum dos casebres — já eram bastante repulsivos por fora, e de nada adiantaria irmos aos seus interiores. Em vez disso, Edwin nos forneceu alguns detalhes.
Alguns dos habitantes, disse êle, viviam ali, ou em suas redondezas, ano após ano, — como é contado o tempo na terra. Eles próprios não tinham noção de tempo, e sua existência era uma interminável continuidade de escuridão, e por sua própria culpa. Muitas almas caridosas tinham entrado naqueles reinos para tentar efetuar uma salvação das sombras. Algumas tinham sido bem sucedidas, outras não. O sucesso depende não do salvador, mas do que se procura salvar. Se este não demonstra uma centelha de luz em sua mente, nem desejo de dar um passo à frente na estrada espiritual, então, nada, literalmente nada, se pode fazer!
A necessidade deve vir de dentro da própria alma caída. E quão profundamente algumas caíram. Nunca se deve supor que aquelas que pelo julgamento terreno hajam falhado espiritualmente são as que mais baixo caíram. Muitas não fracassaram: na verdade, são almas dignas, cuja esplêndida recompensa as aguarda aqui. Por outro lado, há aquelas cuja vida terrena foi espiritualmente horrível, apesar de exte­riormente sublime, cuja missão religiosa designada por um colarinho romano foi tomada como sinônimo de espiritua­lidade da alma. Tais pessoas zombaram de Deus através de uma vida santarrona na terra, onde viveram uma existência de exibição de bondade e santidade. Aqui são mostradas como realmente são. Mas o Deus que ludibriaram durante tanto tempo não castiga.   Elas mesmas ficam encarregadas disso.
As pessoas que habitam essas enxovias que víamos, não são necessariamente aquelas que na terra cometeram algum crime aos olhos terrenos. Havia muitas pessoas que, sem fazerem o mal, nunca tinham feito o bem a um único mortal sobre a terra. Pessoas que vivem inteiramente para si, sem pensar nos outros. Tais almas vivem martelando a mesma tecla de que não fizeram mal a ninguém. Mas fizeram-no a si próprias.
Assim como os reinos superiores tinham criado todas aquelas belezas, os moradores destes planos inferiores ti­nham edificado as condições atrozes de sua vida espiritual. Não havia luz, nem calor, nem vegetação, nem beleza. Mas há esperança — esperança de que uma alma possa progredir. Está ao alcance de cada uma, e nada a impede, a não ser ela própria. Poderá levar infindáveis anos para subir espiri­tualmente uma polegada, mas é um passo na direção certa.
Inevitavelmente pensei na doutrina da maldição eterna, tão ao gosto das religiões ortodoxas, e dos fogos sempiternos do assim chamado inferno. Se este lugar em que estávamos então pode ser chamado inferno, — e sem dúvida o seria pelos teólogos — não há contudo evidência nenhuma de fogo ou calor de qualquer espécie. Pelo contrário, nada havia a não ser uma atmosfera fria e deprimente. A espiritualidade sig­nifica calor no mundo espiritual; a falta de espirtualidade sig­nifica frieza. A doutrina fantástica do fogo do inferno — que queima mas nunca consome — é uma das mais absurda­mente estúpidas e ignorantes inventada pelos menos esclare­cidos homens da igreja.
Quem a inventou ninguém sabe, mas ainda é sustentada rigorosamente como doutrina da igreja. O menor contato com a vida espiritual revela instantaneamente a sua completa impossibilidade, porque é contra as próprias leis da existência.
Isto quanto ao seu sentido literal. E que dizer da chocante blasfêmia que acarreta?
Quando Edwin, Rute e eu estávamos na terra, nos inci­tavam a acreditar que Deus, o Pai do Universo, castiga, real­mente castiga as pessoas condenando-as a arder no fogo do inferno por toda a eternidade. Nunca houve mais grosseira falsificação desse Deus que os ortodoxos dizem adorar. As igrejas — de qualquer denominação — fabricaram uma mons­truosa concepção do Pai Eterno do Céu. Fizeram d'Êle, de um lado, uma montanha de corrupção, gastando enormes somas de dinheiro para erguer igrejas e capelas em Sua glória fingindo uma humilde contrição porque o ofenderam, professando temê-lo, — a Êle que é todo amor! Por outro lado, temos o quadro de um Deus que, sem a menor compunção, atira pobres almas humanas ao fogo eterno, que é inextinguível.
É-nos ensinado pedir piedade a Deus. O Deus da igreja é um Deus de mutáveis disposições. Precisa ser continua­mente aplacado. Não é de maneira alguma certo que, tendo-se pedido piedade, possamos consegui-la. Êle deve ser temido, porque pode desencadear Sua vingança a qualquer momento, e não sabemos quando nos atingirá. É vingativo e não perdoa. Recomenda trivialidades que estão anexas às doutrinas da igreja, e dogmas que imediatamente revelam, não uma grande, mas uma bem ínfima mentalidade. Fêz os portais da Salvação tão estreitos, que poucas, pouquíssimas almas poderão passar por êle. Construiu na terra uma vasta organização conhecida como a Igreja que é a única depositária da verdade espi­ritual — uma organização que praticamente nada conhece da vida no mundo espiritual e no entanto ousa decretar leis às almas encarnadas, e ousa dizer o que vai pela mente do Grande Pai Universal, e ousa desacreditar Seu nome atri­buindo-lhe qualidades que Êle não pode possuir. Que sabem essas mentes tolas, mesquinhas, do Grande Todo Poderoso Deus do Amor? Reparem nisso — de Amor! Depois, pensem de novo em todos os horrores que enumerei, e contemplem isto: um Céu onde tudo é beleza, maior do que a mente

do homem encarnado pode compreender; um céu cujo mi­núsculo fragmento tentei descrever, onde tudo é paz, e boa vontade, e amor entre os companheiros mortais. Tudo isso é criado pelos habitantes desses reinos, e é confirmado pelo Pai do Céu em Seu amor por toda a Humanidade.
E que dizer dos planos inferiores, esses lugares sombrios que hora visitávamos? É o próprio fato de os estarmos visi­tando que me levou a falar deste modo, porque aqui na escuridão estou perfeitamente cônscio da grande realidade da vida eterna, e de que as altas esferas do céu estão ao alcance de toda alma mortal, nascida ou por nascer sobre a terra. As potencialidades da progressão são ilimitadas, e são o di­reito de toda alma. Deus não condena ninguém. O homem se condena a si próprio, mas não eternamente: depende dele mesmo, quando se deverá mover para a frente espiritualmente. Cada espírito odeia o reino inferior por causa da infelicidade que existe por nenhuma outra razão. É por isso que temos aqui grandes organizações, destinadas a ajudar essas almas que o habitam a se erguerem até a luz. E esse trabalho continuará através de eras infindáveis, até que toda alma seja trazida daqueles lugares horríveis, quando então tudo ficará como o Pai do Universo deseja.
Esta, receio, foi uma longa digressão, por isso voltemos às nossas viagens. Devem lembrar-se dos muitos perfumes celestiais que mencionei, oriundos das flores e que flutuam pelo ar. Aqui nestas regiões sombrias é o oposto. Nossas narinas eram assaltadas pelos mais horríveis odores, que lem­bravam a decomposição da carne no mundo terrestre. Eram nauseantes e eu temia serem mais fortes do que pudéssemos suportar, eu e Rute, mas Edwin nos disse para os tratarmos da mesma maneira que o frio, simplesmente fechando-lhes a mente; assim ignoraríamos a sua existência. Apressamo-nos a fazê-lo, e com sucesso. Não é apenas a santidade que exala odores.
Nas viagens pelo nosso reino podíamos gozar de todas as suas inúmeras belezas e encantos, bem como da convi­vência feliz de seus habitantes.  Aqui nestes sombrios reinos tudo é triste e desolado. A própria luz, tênue, lança uma névoa sobre toda a região. Ocasionalmente podíamos ver de re­lance os rostos de alguns infelizes que passavam por nós. Alguns eram inequivocamente maus, mostrando a vida de vício que haviam levado sobre a terra; alguns revelavam o avarento, o miserável, a besta humana. Havia aqui pessoas de quase todas as categorias sociais, desde os tempos pre­sentes até as eras mais remotas. £ aqui encontrei uma relação com nomes que se podiam ler nas histórias verídicas das nações, na biblioteca que havíamos visitado em nosso reino. Tanto Edwin como o seu amigo nos disseram que ficaríamos estupefatos com a lista de nomes, bem conhecidos na História, de pessoas que estavam enfurnadas nessas pestilentas regiões — homens que haviam perpetrado vis e maldosos atos em nome da religião sagrada, ou em favor de seus próprios desprezíveis interesses materiais. Muitos desses infelizes estavam incomunicáveis, e assim ficariam talvez por infindos séculos até que por vontade e esforço próprios, eles se movessem, por pouco que fosse, na direção da luz do pro­gresso espiritual.
Podíamos ver, ao caminharmos, bandos inteiros de almas aparentemente enlouquecidas, a caminho de intentos malé­ficos. Seus corpos apresentavam externamente as mais horripi­lantes e repulsivas deformidades, o absoluto reflexo de suas mentes malsãs. Muitos pareciam velhos, mas me disseram que apesar de estarem ali muitos séculos, não era tanto a passagem dos anos que assim os desfigurava, mas sim a mal­dade de suas mentes.
Nas esferas superiores a beleza da mente rejuvenesce os traços, varre os sinais de cuidados terrenos, preocupações e penas, e apresenta aos olhos esse estado de desenvolvimento físico que se costuma designar como flor da idade.
Os múltiplos sons que se ouviam estavam de acordo com o ambiente; desde o roufenho riso louco até aos gritos de alguma alma em tormento. Uma ou duas vezes dirigiu-se a nós uma alma corajosa que se achava na sua tarefa de

ajudar aqueles aflitos mortais. Ficaram contentes em nos ver e poder falar-nos. Podiam ver-nos na escuridão e nós a elas, mas éramos todos invisíveis para os demais, devido à proteção de que vínhamos munidos ao entrar nesses reinos sombrios. No nosso caso, era Edwin que cuidava de nós coletivamente como recém-chegados, mas os que trabalham na salvação dos infelizes, dispõem cada um de seu próprio meio de proteção.
Se algum prelado — ou teólogo — pudesse ver as coisas que eu, Rute e Edwin víamos, nunca mais diria que Deus, o Pai de Amor, possa condenar algum mortal a tais horrores. Mesmo o padre vendo estas paragens não condenaria ninguém a viver nelas.
Quanto mais víamos no reino das sombras mais com­preendíamos quão fantástico é o ensinamento ortodoxo da igreja à qual eu pertencia quando na terra: que o lugar que se chama inferno eterno é governado pelo Príncipe das Trevas, cujo único fito é prender as almas em suas garras, e que não há salvação depois que se entra em seu reino.  Será que há realmente  uma entidade como esse  Príncipe das Trevas?  Poderia haver, sim, uma alma infinitamente pior do que as outras, e que seria considerada o Rei do Mal. Edwin nos contou que não existe qualquer evidência de tal personagem.  Entidades das esferas superiores tinham viajado por toda parte aqui, sem descobrir tal ser.    Também os sábios afirmam positivamente não conhecerem a existência de tal coisa.  Indubitavelmente há os que, coletivamente, são bem piores do que seus colegas das sombras. A idéia de que um Rei das Trevas exista, e cuja função direta é oposta à do Rei do Céu, é estúpida, primitiva e bárbara.  O Diabo, como indivíduo solitário, não existe, mas uma alma má pode ser um diabo, e, nesse caso, há inúmeros diabos.   É esta frater­nidade, de acordo com os ensinamentos da igreja ortodoxa, que constitui o único elemento do regresso do espírito.
Podemos nos dar ao luxo de rir de tais absurdos. Temos senso de humor, e nos diverte às vezes ouvir algum padre ignorante, espiritualmente cego, protestando conhecer as coisas
do espírito, as quais, na realidade, êle desconhece totalmente. Os povos do espírito têm costas largas, e podem suportar o peso de tais tolices sem experimentar nada a não ser piedade, por almas tão cegas.     
Não é minha intenção entrar em pormenores a respeito dessas esferas sombrias. Pelo menos por enquanto. O método de a igreja assustar pessoas não é o método do mundo espi­ritual. Preferimos nos deter nas belezas do mundo espi­ritual e tentar mostrar algo das glórias que esperam cada alma que termina sua vida na terra. Depende de cada uma, individualmente, o possuí-las mais cedo ou mais tarde.
Fizemos uma pequena consulta e achamos que gosta­ríamos de voltar aos nossos reinos. Voltamos assim das sombras, atravessando rapidamente as névoas e uma vez mais nos achamos em nosso reino celestial, envolvidos em seu ar cálido. Achei que era tempo de dar uma olhadela em minha casa, mas como não desejava me separar de Rute e Edwin, pedi-lhes que me acompanhassem. Ela ainda não vira o meu lar, que muitas vezes se havia perguntado como seria. E achei que algumas frutas do pomar, seriam bem--vindas, depois daquela nossa jornada.
Tudo na casa estava em perfeita ordem, como se alguém cuidasse dela permanentemente. Rute expressou sua admi­ração por tudo o que viu e felicitou-me pela escolha.
Ao inquirir quem era responsável pela boa ordem da casa durante a minha ausência, Edwin respondeu-me com outra pergunta: — Que há aqui para perturbar-lhe a ordem? Não existe pó porque não há destruição de forma alguma. Não há sujeira porque em espírito não pode existir tal coisa. As obrigações domésticas tão conhecidas e enfadonhas na terra, são aqui inexistentes. A necessidade de prover nosso corpo com alimento foi esquecida quando deixamos de ser um corpo físico. Os adornos do lar, tais como tapeçarias e cortinas, nunca necessitavam de ser removidos, visto que aqui nada fenece. Duram até que os queiramos trocar por outros. Assim, o que resta para exigir o nosso cuidado? Temos apenas que sair de nossas casas deixando todas as portas e janelas abertas — não há fechaduras — e podemos voltar quando bem quisermos, encontrando tudo como deixamos.
Podemos achar alguma diferença, alguma melhoria.   Po­demos descobrir, por exemplo, que enquanto estivemos fora algum amigo nos deixou um mimo, flores talvez, ou qualquer outro sinal de amizade.   Rute vagueara por toda a casa, só; como aqui não temos formalidades estúpidas, disse-lhe que ficasse à vontade.   O estilo antigo da arquitetura atraía a sua natureza artística, e ela absorvia-se nos painéis e escul­turas de madeiras do passado.  Daí a pouco atingiu a minha biblioteca e ficou interessada em ver minhas próprias obras na estante. Um livro em especial a atraiu e o estava folheando quando entrei.   O título já por si revelava-lhe muito, disse ela; pude então sentir sobre mim a força de toda sua simpatia; e como ela conhecia a minha grande ambição, ofereceu-me toda ajuda possível para a sua realização.
Assim que completou a inspeção da casa, reunimo-nos na sala de estar e Rute indagou de Edwin uma coisa que já havia me ocorrido: havia um mar algures? Se havia lagos e rios, talvez devesse haver um oceano. A resposta encheu-a de alegria: é claro que havia um mar, e muito bonito. Rute insistiu em vê-lo e para lá nos dirigimos, sob a orientação de Edwin.
Em breve caminhávamos ao longo de um maravilhoso trecho de campo aberto recoberto de grama, como um tapete de veludo verde sob nossos pés. Não havia árvores, mas havia muitos agrupamentos de arbustos, e é claro, uma pro­fusão de flores por toda parte. Por fim subimos a uma pequena elevação e senti que o mar devia estar além dela. De fato, ali terminava o prado e logo em seguida estendia-se o mais lindo panorama que se pode imaginar. Nunca tí­nhamos contemplado um mar tão maravilhoso. A coloração era o mais perfeito reflexo do céu acima dele, e além disso, em cada ondazinha rebrilhavam miríades de tonalidades do arco-íris. A superfície da água era calma, mas não uma calma desprovida de vida. Aqui não há coisas tais como água estagnada ou sem vida.
De onde estávamos, podiam-se ver ilhas de considerável tamanho, ilhas que nos pareciam bem atraentes e que de­víamos visitar. Abaixo de nós estendia-se esplêndida faixa de praia e havia muita gente sentada à beira da água, mas nem sombra de multidões se acotovelando. Flutuando sobre a água, alguns, bem perto de nós, outros mais distantes, estavam os mais lindos barcos — mas não creio estar-lhes fazendo justiça ao chamá-los barcos. Navio seria mais apropriado. Ao perguntar a Edwin quem poderia possuir tão belas em­barcações, ele me respondeu que nós também as poderíamos possuir, se as desejássemos. Os proprietários não tinham outra moradia a não ser os barcos, onde podiam passar o ano todo, visto que aqui o verão é eterno.
Uma pequena descida por um caminho tortuoso nos levou à praia. Edwin informou-nos que era um mar sem marés e não muito profundo, em comparação com o do mundo ter­restre. Não existindo tempestades aqui, a água é sempre plácida e, como as outras águas deste reino, é de temperatura sempre morna e não oferece aos banhistas nenhuma sensação de frio. Banhar-se nessas águas é experimentar uma perfeita manifestação de força espiritual. A areia em que caminhá­vamos não tinha características desagradáveis como as da terra. Não era cansativo andar sobre ela, e apesar de ter a apa­rência comum, era macia ao tato. De fato, esta peculiaridade fazia-a semelhante a um gramado bem tratado, tão unidos são
os seus grãos. Pegamos alguns punhados dessa areia e dei­xamo-la correr entre os dedos; ficamos surpresos ao sentir que não deixava as mãos ásperas, mas parecia mais um pó macio. Era um dos mais estranhos fenômenos que já encontráramos,
mas Edwin observou que era apenas porque aqui nós tínhamos feito um exame mais minucioso do que das outras coisas. Se fôssemos fazer isso com tudo que vemos, com a terra sobre que caminhamos, com a substância de que é feita a nossa casa, ou com os milhares de outros objetos que podem formar o mundo do espírito, viveríamos em constante estado de sur­presa. E mesmo assim ter-se-ia revelado aos nossos olhos uma pequena idéia — apenas uma pequeníssima idéia — da

magnitude da Grande Mente — da Maior Mente do Universo — que mantém este e todos os outros mundos. Realmente, quando os cientistas da terra aqui vêm viver, descobrem um mundo completamente novo, no qual têm que começar novas pesquisas. Não perderam contudo aquela grande experiência terrena. E que alegria ao compararem seus dados em com­panhia de seus colegas, ao catalogarem novos conhecimentos, trabalharem em benefício de novas descobertas.
Depois de apalparmos a areia quisemos mergulhar nossas mãos no mar.   Rute esperava sentir gosto de sal, mas sua surpresa foi grande ao verificar que tal não era verdade. Era mar apenas no nome, devido à quantidade de areia, e às características das terras adjacentes.   Sob todos os outros aspectos assemelhava-se aos ribeirões e aos lagos. Na aparência geral o efeito de conjunto era inteiramente diverso do oceano da terra, devido, entre outras coisas, ao fato de não haver sol para dar-lhe apenas um quarto de luz e causar-lhe aquelas mutações de aspectos quando êle muda de direção.   Aqui a luz é espalhada uniformemente, de uma fonte central, que é imutável e constante. Temos dia perpétuo, mas isso não quer dizer que essa imobilidade se torne monótona.  Há variações o tempo todo; mudanças de cores, com que o homem jamais sonhara, e que só os olhos espirituais podem apreciar, por serem olhos psíquicos.
Desejávamos muito visitar uma das ilhas que se viam ao longe, e Rute achou que seria uma experiência agradável viajar pelo mar numa daquelas esplêndidas embarcações pró­ximas da praia. Surgiu a dificuldade de como poderiam ser usadas, uma vez que eram particulares; mas Edwin, ao ver a ansiedade de Rute, lembrou que um deles pertencia a um amigo. Mesmo que assim não fosse seríamos bem-vindos a qualquer um, bastando nos apresentar a quem se achasse a bordo — isto se quiséssemos respeitar essa formalidade. Edwin chamou nossa atenção para um belo iate ancorado perto da praia. Era de linhas graciosas, e prometia ser veloz e possante.
Em resposta à mensagem de Edwin, enviada através das águas, recebemos imediato convite para subirmos a bordo, o que fizemos sem perda de tempo. Fomos recebidos com grande alegria pelo proprietário que nos levou a conhecer sua esposa. Ela era encantadora e podia-se ver que ambos formavam um par ideal. Sabedores de que éramos recém--chegados estavam ansiosos por nos mostrar o barco.
Às primeiras observações reparamos que faltavam muitos dos aparelhos e partes essenciais aos barcos da terra. Coisas indispensáveis, como a âncora, por exemplo. Não havendo ventos, correntes ou marés, nas águas espirituais, uma âncora é supérflua, apesar de nos dizerem que alguns proprietários de barcos as possuem apenas como ornamento, sem o qual não acham suas embarcações completas. Havia enorme es­paço no tombadilho, e uma copiosa provisão de confortáveis cadeiras. Embaixo, salões bem decorados. Mas Rute estava desapontada por não ter deparado com nenhuma evidência de força motriz para impelir a embarcação, e naturalmente concluiu que o iate era incapaz de movimento independente. Eu partilhava seu desapontamento, mas Edwin tinha um brilho malicioso no olhar, o que já me devia ter feito ver que aqui as coisas não são como na terra. Nosso anfitrião. tinha captado nossos pensamentos e imediatamente nos levou à casa do leme. Qual não foi nosso espanto ao ver que estávamos nos afastando da praia, lenta e suavemente! Os outros riam alegremente do nosso embaraço, e corremos para a amurada para vermos o movimento na água. Não havia engano, estávamos de fato em movimento, e aumentando a velocidade à medida que avançávamos. Retornamos à casa do leme e solicitamos a explicação imediata daquele aparente passe de mágica.

Continua próximo bloco V -  Uma Visita
-  



Nenhum comentário: