VIII. Planos Para Trabalhos Futuros
Uma curta caminhada nos levou a um prédio retangular que, segundo fomos
informados, era o departamento da ciência. Tanto minha bela companheira como eu
estávamos perplexos, sem saber de que forma a ciência, tal como a compreendemos na terra, poderia ter lugar no mundo espiritual. Entretanto, logo iríamos aprender muitas coisas, e a principal delas é que o mundo deve agradecer aos espíritos
todas as principais descobertas científicas que têm sido feitas
através dos séculos.
Os laboratórios daqui estão muitas dezenas de anos mais adiantados do que os da terra. E levará anos antes que muitas descobertas revolucionárias possam ser enviadas para a terra, por causa do seu insuficiente progresso.
Nem Rute nem eu tínhamos muita inclinação para ciência
ou engenharia, e Edwin, conhecedor de nossos gostos, propôs que dedicássemos apenas uns momentos a esta seção.
Aqui todos os campos de investigação científica, e de engenharia, estudo e descobertas, são incentivados e podiam-se
ver também muitos daqueles homens cujos nomes se tornaram famosos, e que, passando a espíritos continuaram suas atividades com os colegas de ciência, e desta vez manejando
completas e imensas fontes de recursos. Neste edifício podem eles resolver os mistérios que os intrigavam na terra. E não existem mais coisas desagradáveis, como a rivalidade pessoal. Não precisam mais fazer nome profissional e muitas
desvantagens materiais são abandonadas para sempre. Segue-se que com tal reunião de sábios, com tais recursos à sua disposição, os resultados devem ser evidentemente grandes. Em idades passadas todas as descobertas que marcaram
época vieram do mundo espiritual. De si próprio, em carne e osso, o homem pode fazer muito pouco. Muita gente se contenta em considerar o mundo auto-suficiente. Mas não o é! O cientista é fundamentalmente um homem de visão; ela pode ser limitada mas existe, não obstante. E nossos próprios cientistas do espírito podem — e o fazem
— impressionar seus colegas com o fruto de suas investigações. Nos casos em que há dois homens trabalhando no mesmo problema, aquele que já é espírito estará muito mais adiantado que o seu confrade ainda da terra. Uma sugestão
do primeiro é freqüentemente o bastante para pôr o segundo na pista certa, e o
resultado é uma descoberta, para benefício da Humanidade.
Contudo, se em muitas circunstâncias a Humanidade é tão favorecida, em
muitas outras, dores e tribulações lhe advêm, pela perversão diabólica daquelas
descobertas. Todas foram enviadas do mundo espiritual para vantagem e progresso
do homem. Se, porém, mentes pervertidas usam essas mesmas descobertas para a
destruição do homem este só a si mesmo deve culpar. É por isso que afirmei que
a terra ainda não progrediu o suficiente para receber mais algumas dessas
esplêndidas invenções aqui aperfeiçoadas. Estão prontas a serem usadas, mas se
fossem enviadas à terra em seu atual estado de espírito, elas seriam deturpadas
por pessoas ines-crupulosas.
O povo da terra tem obrigação de cuidar que os modernos inventos sejam
empregados unicamente para seu bem espiritual e material. Quando chegar a hora
em que verdadeiro progresso espiritual for alcançado, então, o plano terrestre
pode esperar uma avalanche de novas invenções e descobertas, proveniente dos
engenheiros e cientistas do mundo do espírito. Mas a terra tem um longo e
doloroso caminho a trilhar antes dessa hora. Enquanto isso, o trabalho dos
nossos cientistas continua.
Nós, do espírito, não necessitamos das muitas invenções do plano
terrestre. Creio já ter dito que nossas leis são totalmente diversas das do mundo.
Não achamos utilidade para as invenções que aumentarão a velocidade de
locomoção. Nosso próprio método de transporte é tão rápido quanto o pensamento.
Não temos necessidade de poupar a vida, porque somos indestrutíveis. Não temos
necessidade de centenas de invenções que tornam a vida mais fácil, mais
segura, mais confortável e aprazível, porque a nossa vida já é tudo isso, e
mais ainda. Mas neste templo da ciência, muitos e muitos homens devotados
estavam trabalhando para o melhoramento do plano terrestre, por meio de suas
pesquisas, e lamentavam que nem tudo ainda pudesse ser dado à terra por não ser
seguro fazê-lo.
Foi-nos permitido ver o progresso que tem sido feito
nos transportes, e ficamos atônitos ante o adiantamento que se tem alcançado. Mas isso não é nada, comparado com o que está para vir. Quando o homem exerce sua vontade na direção certa, não há limites para os enormes benefícios que ganhará em progresso material, mas este precisa caminhar a par com o progresso espiritual.
E até então não será permitido que eles possuam as inúmeras invenções prontas para serem enviadas.
Em geral as pessoas da terra são muito teimosas. Ressentem-se de qualquer invasão em seus terrenos, ou naquilo
que presunçosamente chamam suas reservas. Quando qualquer pesquisa de nossos cientistas é comunicada à terra,
nunca pretendemos que ela seja monopolizada por alguns, com a exclusão de todos os outros. Os que assim fizeram terão de pagar um alto preço por este breve período de prosperidade. Nem se pretendeu também que os dois mundos — o nosso e o vosso — ficassem como estão agora, tão distantes em contato e idéias. Dia virá em que os nossos dois mundos
serão intimamente entrelaçados, quando a comunicação entre ambos for um fato corriqueiro da vida, e quando a grande
riqueza de recursos do mundo espiritual estiver aberta ao mundo terreno, para uso e benefício de toda a raça humana.
A visão de tanta atividade por parte de meus companheiros de reino, tinha-me feito pensar a respeito de meu
próprio futuro, e que forma tomaria. Não tinha ainda opinião definida sobre o assunto, por isso expus minha dificuldade a Edwin. Rute, ao que parece, estava preocupada com o mesmo problema, sentíamo-nos, ambos, pela primeira vez desde a chegada, um pouco inquietos. Nosso velho amigo não ficou nada surpreso por nos ver dessa forma. Era uma sensação comum a todos, mais tarde ou mais cedo, o anseio de estar fazendo algo para o bem do próximo. Edwin assegurou-nos que continuaríamos em nossas explorações indefinidamente se assim o desejássemos, e que ninguém criticaria ou comentaria as nossas ações. Seria tratado como assunto
de nosso único interesse. Sentíamos, porém, que gostaríamos
de resolver a questão do nosso
futuro trabalho, e apelamos
para a orientação do nosso bom amigo. Sugeriu êle que fôssemos aos limites dos
reinos superiores, onde, deveis estar lembrados, êle próprio havia declarado
ser possível resolver esse assunto. Assim deixamos o edifício da ciência e nos
achamos nos arredores do nosso reino.
Fomos conduzidos a uma belíssima casa, que pela aparência era muito
mais iluminada do que as outras situadas mais para o interior. A atmosfera era
mais rarefeita e creio que estávamos mais ou menos no mesmo lugar da nossa
primeira visita aos limites. Edwin conduziu-nos para dentro, com toda a
liberdade, e nos deu as boas-vindas.
Assim que entrei compreendi instintivamente que êle nos levara à sua própria casa. Ê estranho mas nunca
havíamos perguntado onde era e êle propositadamente manteve nossas mentes afastadas
desse assunto. Rute ficou encantada com tudo o que viu e ralhou com êle por não
nos ter falado dela mais cedo. Era uma construção inteiramente de pedra, e
apesar de ser meio nua à vista, emanava certa amizade de cada canto. As salas
não eram grandes, mas apropriadas às necessidades de Edwin. Havia muitas
cadeiras confortáveis e estantes de livros bem fornecidas. "Mas a sensação
de calma e paz que dela se recebia é que nos chamou a atenção.
Edwin fêz-nos sentar e ficar à vontade. Não havia pressa e podíamos
discutir o nosso problema com calma. Já de
começo admiti francamente não ter idéia do que poderia fazer. Enquanto na terra
tinha tido sorte de seguir minhas inclinações, e por conseguinte era muito
ocupado. Mas o meu trabalho terminara — pelo menos num aspecto — quando minha
vida terminou. Edwin propôs então se eu gostaria de me unir a êle em seu
trabalho relacionado com os recem--chegados que, como nós, se achavam incapazes
ainda de compreender a
verdade da mudança por que tinham passado, e da irrealidade de tanta coisa de suas religiões.
Apesar de gostar muito da proposta de meu amigo não me sentia competente para realizar
tal trabalho, | ao que
Edwin refutou minhas objeções. Eu trabalharia com êle, pelo menos no começo, e quando me acostumasse ao trabalho,
poderia continuar sozinho se quisesse. Falando com experiência, Edwin disse que duas ou mais pessoas — e aqui lançou o olhar para Rute — podiam ser de mais ajuda a um
indivíduo do que este trabalhando completamente só. O peso dos números parecia exercer grande poder de convicção sobre aqueles que se mostrassem particularmente teimosos em apegar-se às suas convicções terrenas. Uma vez que Edwin achava que eu lhe seria útil, tive prazer em unir minhas forças às deles. Rute ofereceu-se também para trabalhar com êle, dependendo é claro de^sua aprovação. Havia muita coisa, disse Edwin ao aceitar, que uma moça pode fazer, e nós três trabalhando em tão completa harmonia e amizade, poderíamos realizar bastante. Fiquei contente que Rute se unisse a nós, visto que assim nosso feliz grupo não seria
desfeito.
Havia, entretanto, outro assunto em minha mente, e referia-se a um livro especial que desejaria não ter escrito na terra. Não que a idéia dele me tornasse infeliz, mas queria livrar-me dela. Sem dúvida que o meu novo trabalho me traria eventualmente aquela completa paz de espírito, mas ainda assim gostaria de tratar do assunto de uma maneira mais direta. Edwin sabia o que eu estava querendo, e lembrou-me o que antes já havia dito a respeito das dificuldades de comunicação com a terra. Mas êle também havia mencionado que podíamos pedir orientação ao plano mais elevado: Se eu ainda quisesse tentar a comunicação poderíamos pedir
conselhos agora, e assim acomodar a questão do meu trabalho no futuro.
Edwin deixou-nos então e retirou-se para outro aposento. Mal tinha conversado um pouco com Rute, quando êle voltou acompanhado de um homem cujo aspecto logo me fez compreender que tinha vindo de um plano mais elevado, em resposta ao chamado de Edwin. Não parecia nosso compatriota, e, de fato, mais tarde vim a saber que era egípcio. Falava a nossa língua perfeitamente. Edwin apresentou-nos
e explicou o meu desejo e as possíveis dificuldades em realizá-lo.
Nosso visitante tinha forte personalidade, e dava uma impressão de calma
e placidez.
Sentamo-nos confortavelmente e o egípcio fez algumas considerações. Se,
disse ele, eu acreditava firmemente que voltando ao plano terrestre para falar,
pudesse remediar essa situação que me causava remorsos, então ele faria tudo
para me auxiliar neste empreendimento. Só me seria possível, entretanto, fazer
o que queria, dentro de alguns anos. Nesse ínterim eu devia aceitar apenas a
sua afirmação de que um dia eu me poderia comunicar, e aceitei a promessa. Se
tivesse paciência, tudo seria como desejava. Eu deveria deixar o assunto em
suas mãos e tudo correria bem. O tempo — para usar uma expressão da terra —
logo passaria, e certos acontecimentos, enquanto isso, abririam mais caminho e
forneceriam a ambicionada oportunidade.
Deveis vos lembrar que eu estava querendo desfazer algo que desejava
nunca ter feito. Era uma tarefa que não podia ser realizada num momento. O que
escrevera nunca poderia apagar, mas poderia aliviar a minha mente, dizendo a
verdade como a conheço agora àqueles ainda no plano terrestre.
O bondoso egípcio ergueu-se e apertou-nos as mãos. Felicitou-nos pela
maneira como nos acostumáramos às novas condições de vida, desejou-nos alegria
em nosso novo trabalho, e finalmente repetiu-me a promessa de que meus desejos
íntimos seriam realizados. Tentei expressar minha gratidão pelo seu auxílio,
mas nem me quis ouvir e com um aceno de mão, partiu. Ainda continuamos
discutindo nossos planos, que eu desejava logo iniciar.
Não se deve julgar que fazíamos parte de uma campanha para converter as
pessoas, no sentido que os terrenos dão a essa palavra. Longe disso. Não
interferimos nas crenças de cada um, nem em seus pontos de vista: só damos
nossas opiniões quando pedidas ou quando vemos que podem ser de alguma
utilidade. Nem gastamos o nosso tempo por aí a
evangelizar as pessoas. Mas chega uma hora em que um desassossego espiritual se manifesta no homem cuja alma
esteve comprimida e restringida
por idéias erradas, de tal forma, que êle se vê na contingência de se voltar para o caminho certo.
Muitas pessoas não se conformam com o fato de que, ao
passarem da terra para cá, sofreram a morte do corpo físico. Resolutamente não querem acreditar que são o que no mundo
chamam de mortos. Sentem vagamente que houve alguma mudança, mas em que consiste, não sabem. Alguns, depois de explicações — e até demonstrações — chegam a avaliar o que
realmente aconteceu, outros são teimosos e só se convencem
depois de prolongados argumentos. Neste último caso somos às vezes obrigados a abandonar essas almas por algum tempo, para permitir-lhes uma ligeira contemplação do próprio caminho. Sabemos que seremos imediatamente procurados, assim que sentirem o poder dos nossos argumentos. Em muitos aspectos é trabalho cansativo, apesar de eu usar a palavra cansativo em seu sentido terreno.
Rute e eu estávamos mais do que gratos a Edwin pela sua ajuda em nossos casos, e eu, também ao egípcio, pela excelente perspectiva de me comunicar com a terra. Em vista de nossas decisões de cooperar com Edwin em seu
trabalho, ele sugeriu que, como havíamos visto um pouco — e muito pouco até — do nosso reino, poderíamos agora proveitosamente fazer uma visita aos reinos sombrios. Rute e eu concordamos, acrescentando que tínhamos agora suficiente autoconfiança para suportar qualquer coisa de natureza desagradável que nos fosse mostrada. Estaríamos, é claro, sob a
imediata proteção e guia do nosso velho amigo. É excusado dizer que sem ela não tentaríamos ir, mesmo que nos fosse permitido.
Deixamos a bela casa de Edwin, atravessamos rapidamente o nosso próprio reino, e de novo nos achamos nas fronteiras dos reinos inferiores. Edwin nos avisou que sentiríamos aquela sensação de frio, mas com algum esforço podíamos expeli-la. Colocou-se entre nós, e Rute e eu nos
apoiamos em seus braços. Êle se voltou para nos olhar, e ficou
aparentemente satisfeito com o que viu. Ao olhar para Rute notei que suas
vestes, bem como as de Edwin, haviam tomado uma tonalidade cinza, e vi também
que as minhas tinham passado por igual alteração. Isto nos deixou perplexos,
mas o nosso amigo explicou que este esmaecer de cores era apenas uma lei
natural, e não significava que perdêssemos o que já havíamos ganho. Essa lei
era para que não chamássemos a atenção em lugares estranhos, nem levássemos a
luz do nosso reino para aqueles planos obscuros, onde poderia cegar os seus
habitantes.
Caminhávamos ao longo de terreno árido. A terra era dura e o verde das
árvores desaparecera. O céu era sombrio e plúmbeo, e a temperatura tinha caído
consideravelmente, mas podíamos sentir um calor interno, que a combatia. Diante
de nós, víamos apenas uma grande massa de neblina, que se adensava cada vez
mais à medida que avançávamos, até que nos sentimos envolvidos por ela.
Rodopiava à nossa volta e parecia esmagar-nos. De repente surgiu da neblina uma
figura, que avançou em nossa direção. Ao reconhecer Edwin, acolheu-o com
cordialidade, e este nos apresentou, contando das nossas intenções. Êle disse
que se uniria a nós e talvez nos fosse de alguma utilidade, e aceitamos prontamente
a oferta. Retomamos a jornada e depois de passarmos novamente pelo nevoeiro,
este começou a clarear um pouco e por fim desvaneceu-se. Podíamos agora ver
claramente o nosso novo ambiente. A paisagem era extremamente árida, com apenas
uma habitação aqui e acolá, e assim mesmo de ínfima categoria. Ao nos
aproximarmos de uma delas, pudemos examiná-la. Era pequena e baixa,
inteiramente desprovida de ornamentos e pouco convidativa. Tinha até certo
aspecto sinistro, apesar de sua simplicidade, e parecia nos repelir à medida
que nos aproximávamos. Não havia sinal de vida nas janelas ou ao redor dela.
Não havia jardins em suas adjacências; ela existia por si só, solitária e
tristonha. Edwin e o nosso novo amigo evidentemente conheciam bem o seu
morador, porque ao chegar à porta da frente, Edwin deu
uma rápida batida e, sem esperar resposta, entrou, fazendo-nos sinal
para o seguirmos. Ao fazê-lo, achamo-nos na mais pobre espécie de moradia.
Pouca mobília, ve essa de ínfima categoria. Dir-se-ia à
primeira vista que a pobreza reinava aqui, e qualquer pessoa ficaria
naturalmente penalizada e inclinada a oferecer auxílio. Mas aos nossos olhos a
pobreza era da alma, e a esqualidez, do espírito; e apesar de causar piedade,
era uma piedade de outra espécie, para a qual o auxílio material de nada
adianta. O frio parecia maior ainda, lá dentro, e nos disseram que êle provinha
do próprio dono da casa.
Passamos a um quarto dos fundos e encontramos o seu único ocupante
sentado numa cadeira. Não fez menção de se levantar ou nos dar as boas-vindas.
Rute e eu ficamos para trás enquanto os outros dois se adiantavam para falar ao
nosso pouco acolhedor anfitrião. Era um homem de meia-idade. Tinha um certo quê
de prosperidade em decadência e as roupas que usava eram mal cuidadas. Recebeu
a mim e a Rute de sobrecenho carregado e não falou imediatamente, mas quando o
fez, foi para esbravejar conosco incoerentemente e consegui compreender que se
julgava vítima de uma injustiça. Edwin disse-lhe cruamente que era tolice,
porque não há injustiça no mundo do espírito. Uma argumentação acalorada se
seguiu, ou pelo menos por parte dele, visto que Edwin conservou-se calmo e
ponderado e na verdade maravilhosamente bondoso. Muitas vezes ele olhou para
Rute, cujo rosto suave parecia iluminar o quarto sombrio, e eu também dirigi
meu olhar para ela, que agarrada ao meu braço, se mostrava imperturbável.
Por fim êle se acalmou e pareceu mais tratável, mantendo com Edwin uma
conversa particular. Por fim disse a Edwin que iria pensar no assunto, e que se
êle o quisesse visitar outra vez, com seus amigos, 'podia fazê-lo. Ao dizer
isso ergueu-se de sua cadeira, acompanhou-nos até a porta e reparei que estava
quase afável. Era como se estivesse relutando em se tornar cortês. Ficou à
porta nos observando até nos perder de vista.
Edwin parecia contente com a visita e nos deu alguns particulares a
respeito desse estranho personagem. Fora
um homem bem sucedido nos negócios, e era espírito havia já alguns anos. Não pensava em mais
nada a não ser nos negócios, e sempre achou que qualquer meio justificava seus
fins, contanto que fossem legais. Era impiedoso com os outros e dava à eficiência a estatura de um deus. Em
sua casa tudo e todos eram-lhe subservientes. Dava generosamente esmolas
quando disso era provável retirar alguma vantagem e crédito. Apoiava sua
religião e sua igreja com vigor, regularidade e fervor. Sentia-se um ornamento
da igreja e era muito estimado por seus correligionários. Ajudava na
construção, e uma capela foi batizada com o nome do seu doador. Mas pelo que
Edwin pôde aquilatar, nunca tinha praticado uma ação decente e desinteressada
em toda a sua vida.
E agora suas lamentações eram que, depois de ter tido vida tão exemplar
— a seus olhos — fosse condenado a ambiente tão esquálido. Recusava-se a
reconhecer que êle próprio se condenara, e não podia culpar ninguém, a não ser
êle mesmo.
Queixava-se de que a Igreja o enganara, visto que sua generosidade fora
aceita, e acreditava por isso que seus donativos pesariam na balança do Além.
Não podia perceber que o que importa é o motivo, e que um estado de espírito
feliz não pode ser comprado. Um pequeno
serviço, voluntária e generosamente feito por um mortal, constrói um maior
edifício em espírito, à glória
de Deus, do que grandes somas gastas em argamassa e pedra clericais erigidas à
glória do homem.
O atual estado de espírito daquele
homem era a ira, tanto maior porque nunca lhe havia sido negado nada na terra.
Não estava acostumado a circunstâncias tão ínfimas como aquelas em que vivia.
Suas dificuldades eram acrescidas pela circunstância de não saber a quem
culpar. Esperando uma alta recompensa, tinha sido lançado às profundezas. Não
tinha feito verdadeiros amigos. Parecia não haver aconselhar. Edwin havia tentado argumentar, mas de nada adiantara.
Recebia poucas visitas, porque as repelia, e apesar de Edwin o ir ver
freqüentemente, sua atitude era sempre a mesma — sólida aderência ao senso de
injustiça.
Mas desde a última visita, na companhia de nós três, já havia alguns
sintomas de uma mudança próxima. A princípio não eram evidentes, mas ao
aproximar-se o fim de nossa visita êle tinha dado mostra de ceder nessa
atitude. E Edwin tinha a certeza que era mais devido à presença de Rute do que
aos seus argumentos. Acreditava firmemente que se o fôssemos ver no caminho dé
volta das nossas explorações, já o acharíamos em disposição diferente. Estava
ainda relutante em admitir que a culpa era sua, mas a perseverança faz
maravilhas.
Rute ficara naturalmente contente por ser tão cedo, de alguma utilidade,
apesar de afirmar que se alguma coisa fizera, fora a de ser simples
espectadora! Edwin porém lhe fêz ver que, se não fizera alguma ação externa,
mostrara entretanto uma sincera piedade e simpatia por aquele homem infeliz.
Isso explicava os freqüentes olhares dele em sua direção. Sentira sua
consideração e isso lhe fizera bem, embora não o soubesse ainda.
Este foi o nosso primeiro contato com os desafortunados das esferas
inferiores, e me estendi um pouco nos pormenores. Fi-lo porque foi uma espécie
de introdução para o nosso futuro trabalho. Por enquanto, entretanto, nada
deveríamos fazer nesses planos além de observações.
Nós quatro retornamos à nossa jornada. Não havia
caminho para se andar, e o solo estava se tornando de formação rochosa. A luz
desaparecia velozmente de um céu pesado e negro. Não havia vivalma, nem casas,
nem sinais de vida. Os arredores todos estavam vazios, e incolores, e
parecíamos vagar num outro mundo. Mal podíamos ver, à nossa frente, algo com a
aparência de casas, e para lá nos encaminhamos.
O terreno era agora de rochas e nada mais, e
viam-se aqui e acolá pessoas sentadas, de cabeça baixa, aparentemente
inanimadas, mas na realidade mergulhadas em desespero e tristeza. Não
reparavam em nós ao passarmos, e logo alcançamos as habitações divisadas de
longe.
IX. Os Domínios Sombrios
A certa distância podia-se
notar que aquelas habitações não passavam de cortiços. Era uma desolação
vê-las, e mais ainda era pensar que elas eram os frutos da vida dos homens
sobre a terra. Não entramos em nenhum dos casebres — já eram bastante repulsivos
por fora, e de nada adiantaria irmos aos seus interiores. Em vez disso, Edwin
nos forneceu alguns detalhes.
Alguns dos habitantes, disse
êle, viviam ali, ou em suas redondezas, ano após ano, — como é contado o tempo
na terra. Eles próprios não tinham noção de tempo, e sua existência era uma
interminável continuidade de escuridão, e por sua própria culpa. Muitas almas
caridosas tinham entrado naqueles reinos para tentar efetuar uma salvação das
sombras. Algumas tinham sido bem sucedidas, outras não. O sucesso depende não
do salvador, mas do que se procura salvar. Se este não demonstra uma centelha
de luz em sua mente, nem desejo de dar um passo à frente na estrada espiritual,
então, nada, literalmente nada, se pode fazer!
A necessidade deve vir de dentro
da própria alma caída. E quão profundamente algumas caíram. Nunca se deve supor
que aquelas que pelo julgamento terreno hajam falhado espiritualmente são as
que mais baixo caíram. Muitas não fracassaram: na verdade, são almas dignas,
cuja esplêndida recompensa as aguarda aqui. Por outro lado, há aquelas cuja
vida terrena foi espiritualmente horrível, apesar de exteriormente sublime,
cuja missão religiosa designada por um colarinho romano foi tomada como
sinônimo de espiritualidade da alma. Tais pessoas zombaram de Deus através de
uma vida santarrona na terra, onde viveram uma existência de exibição de
bondade e santidade. Aqui são mostradas como realmente são. Mas o Deus que
ludibriaram durante tanto tempo não castiga.
Elas
mesmas ficam
encarregadas disso.
As pessoas que habitam essas
enxovias que víamos, não são necessariamente aquelas que na terra cometeram
algum crime aos olhos terrenos. Havia muitas pessoas que, sem fazerem o mal,
nunca tinham feito o bem a um único mortal sobre a terra. Pessoas que
vivem inteiramente para si, sem pensar nos outros. Tais almas vivem martelando
a mesma tecla de que não fizeram mal a ninguém. Mas fizeram-no a si próprias.
Assim como os reinos
superiores tinham criado todas aquelas belezas, os moradores destes planos
inferiores tinham edificado as condições atrozes de sua vida espiritual. Não
havia luz, nem calor, nem vegetação, nem beleza. Mas há esperança — esperança
de que uma alma possa progredir. Está ao alcance de cada uma, e nada a impede,
a não ser ela própria. Poderá levar infindáveis anos para subir espiritualmente
uma polegada, mas é um passo na direção certa.
Inevitavelmente pensei na
doutrina da maldição eterna, tão ao gosto das religiões ortodoxas, e dos fogos
sempiternos do assim chamado inferno. Se este lugar em que estávamos então pode
ser chamado inferno, — e sem dúvida o seria pelos teólogos — não há contudo
evidência nenhuma de fogo ou calor de qualquer espécie. Pelo contrário, nada
havia a não ser uma atmosfera fria e deprimente. A espiritualidade significa
calor no mundo espiritual; a falta de espirtualidade significa frieza. A
doutrina fantástica do fogo do inferno — que queima mas nunca consome — é uma
das mais absurdamente estúpidas e ignorantes inventada pelos menos esclarecidos
homens da igreja.
Quem a inventou ninguém sabe,
mas ainda é sustentada rigorosamente como doutrina da igreja. O menor contato
com a vida espiritual revela instantaneamente a sua completa impossibilidade,
porque é contra as próprias leis da existência.
Isto quanto ao seu sentido literal. E que dizer da
chocante blasfêmia que acarreta?
Quando Edwin, Rute e eu
estávamos na terra, nos incitavam a acreditar que Deus, o Pai do Universo,
castiga, realmente
castiga as
pessoas condenando-as a arder no fogo do inferno por toda a eternidade. Nunca
houve mais grosseira falsificação desse Deus que os ortodoxos dizem adorar. As
igrejas — de qualquer denominação — fabricaram uma monstruosa concepção do Pai
Eterno do Céu. Fizeram d'Êle, de um lado, uma montanha de corrupção, gastando
enormes somas de dinheiro para erguer igrejas e capelas em Sua glória fingindo uma humilde
contrição porque o ofenderam, professando temê-lo, — a Êle que é todo amor! Por
outro lado, temos o quadro de um Deus que, sem a menor compunção, atira pobres almas
humanas ao fogo eterno, que é inextinguível.
É-nos ensinado pedir piedade
a Deus. O Deus da igreja é um Deus de mutáveis disposições. Precisa ser
continuamente aplacado. Não é de maneira alguma certo que, tendo-se pedido
piedade, possamos consegui-la. Êle deve ser temido, porque pode desencadear Sua
vingança a qualquer momento, e não sabemos quando nos atingirá. É vingativo e
não perdoa. Recomenda trivialidades que estão anexas às doutrinas da igreja, e
dogmas que imediatamente revelam, não uma grande, mas uma bem ínfima
mentalidade. Fêz os portais da Salvação tão estreitos, que poucas, pouquíssimas
almas poderão passar por êle. Construiu na terra uma vasta organização
conhecida como a Igreja que é a única depositária da verdade espiritual — uma organização que
praticamente nada conhece da vida no mundo espiritual e no entanto ousa decretar leis às almas
encarnadas, e ousa dizer o que vai pela mente do Grande Pai Universal, e ousa desacreditar Seu nome atribuindo-lhe
qualidades que Êle não pode possuir. Que sabem essas mentes tolas, mesquinhas,
do Grande Todo Poderoso Deus do Amor? Reparem nisso — de Amor! Depois, pensem
de novo em todos os horrores que enumerei, e contemplem isto: um Céu onde tudo
é beleza, maior do que a mente
do homem encarnado pode compreender; um céu cujo minúsculo fragmento tentei descrever, onde tudo é paz, e boa
vontade, e amor entre os companheiros mortais. Tudo isso é criado pelos habitantes desses reinos, e é confirmado pelo Pai do Céu em Seu amor por toda a Humanidade.
E que dizer dos planos inferiores, esses lugares sombrios
que hora visitávamos? É o próprio fato de os estarmos visitando que me levou a falar deste modo, porque aqui na
escuridão
estou perfeitamente cônscio da grande realidade da vida eterna, e de que as altas esferas do céu estão ao alcance
de toda alma mortal, nascida ou por nascer sobre a terra.
As potencialidades da progressão são ilimitadas, e são o direito de toda alma. Deus não condena ninguém. O homem se condena a si próprio, mas não eternamente: depende dele
mesmo, quando se deverá mover para a frente espiritualmente.
Cada espírito odeia o reino inferior por causa da infelicidade
que lá existe — por nenhuma outra razão. É por isso que
temos aqui grandes organizações, destinadas a ajudar essas
almas que o habitam a se erguerem até a luz. E esse trabalho
continuará
através de eras infindáveis, até que toda alma
seja trazida daqueles lugares horríveis, quando então tudo
ficará como o Pai do Universo deseja.
Esta, receio, foi uma longa digressão, por isso voltemos
às nossas viagens. Devem lembrar-se dos muitos perfumes
celestiais
que mencionei, oriundos das flores e que flutuam
pelo ar. Aqui nestas regiões sombrias é o oposto. Nossas
narinas eram assaltadas pelos mais horríveis odores, que lembravam a decomposição da carne no mundo terrestre. Eram
nauseantes
e eu temia serem mais fortes do que pudéssemos
suportar,
eu e Rute, mas Edwin nos disse para os tratarmos
da mesma maneira que o frio, simplesmente fechando-lhes a mente; assim ignoraríamos a sua existência. Apressamo-nos
a fazê-lo, e com sucesso. Não é apenas a santidade que exala
odores.
Nas viagens pelo nosso reino podíamos gozar de todas as suas inúmeras belezas e encantos, bem como da convivência feliz de seus habitantes. Aqui nestes sombrios reinos
tudo é triste e desolado. A própria luz, tênue, lança uma névoa
sobre toda a região. Ocasionalmente podíamos ver de relance os rostos de alguns infelizes que passavam por nós.
Alguns eram inequivocamente maus, mostrando a vida de vício que haviam levado sobre a terra; alguns revelavam o
avarento,
o miserável, a besta humana. Havia aqui pessoas
de quase todas as categorias sociais, desde os tempos presentes até as eras mais remotas. £ aqui encontrei uma relação
com nomes que se podiam ler nas histórias verídicas das
nações, na biblioteca que havíamos visitado em nosso reino.
Tanto Edwin como o seu amigo nos disseram que ficaríamos
estupefatos
com a lista de nomes, bem conhecidos na História,
de pessoas que estavam enfurnadas nessas pestilentas regiões
— homens que haviam perpetrado vis e maldosos atos em nome da religião sagrada, ou em favor de seus próprios
desprezíveis
interesses materiais. Muitos desses infelizes
estavam incomunicáveis, e assim ficariam — talvez por infindos
séculos — até que por vontade e esforço próprios, eles se
movessem,
por pouco que fosse, na direção da luz do progresso espiritual.
Podíamos ver, ao caminharmos, bandos inteiros de almas
aparentemente enlouquecidas, a caminho de intentos maléficos. Seus corpos apresentavam externamente as mais horripilantes e repulsivas deformidades, o absoluto reflexo de suas
mentes malsãs. Muitos pareciam velhos, mas me disseram
que apesar de estarem ali há muitos séculos, não era tanto a
passagem dos anos que assim os desfigurava, mas sim a maldade de suas mentes.
Nas esferas superiores a beleza da mente rejuvenesce os
traços, varre os sinais de cuidados terrenos, preocupações e penas, e apresenta aos olhos esse estado de desenvolvimento
físico que se costuma designar como flor da idade.
Os múltiplos sons que se ouviam estavam de acordo com o ambiente; desde o roufenho riso louco até aos gritos de
alguma alma em tormento. Uma ou duas vezes dirigiu-se a nós uma alma corajosa que lá se achava na sua tarefa de
ajudar aqueles aflitos mortais. Ficaram contentes em
nos ver e poder falar-nos. Podiam ver-nos na escuridão e nós a elas, mas éramos
todos invisíveis para os demais, devido à proteção de que vínhamos munidos ao
entrar nesses reinos sombrios. No nosso caso, era Edwin que cuidava de nós coletivamente
como recém-chegados, mas os que trabalham na salvação dos infelizes, dispõem
cada um de seu próprio meio de proteção.
Se algum prelado — ou teólogo
— pudesse ver as coisas que eu, Rute e Edwin víamos, nunca mais diria que Deus,
o Pai de Amor, possa condenar algum mortal a tais horrores. Mesmo o padre vendo
estas paragens não condenaria ninguém a viver nelas.
Quanto mais víamos no reino
das sombras mais compreendíamos quão fantástico é o ensinamento ortodoxo da
igreja à qual eu pertencia quando na terra: que o lugar que se chama inferno
eterno é governado pelo Príncipe das Trevas, cujo único fito é prender as almas
em suas garras, e que não há salvação depois que se entra em seu reino. Será que há realmente uma entidade como esse Príncipe das Trevas? Poderia haver, sim, uma alma infinitamente
pior do que as outras, e que seria considerada o Rei do Mal. Edwin nos contou
que não existe qualquer evidência de tal personagem. Entidades das esferas superiores tinham
viajado por toda parte aqui, sem descobrir tal ser. Também os sábios afirmam positivamente não
conhecerem a existência de tal coisa.
Indubitavelmente há os que, coletivamente, são bem piores do que seus
colegas das sombras. A idéia de que um Rei das Trevas exista, e cuja função
direta é oposta à do Rei do Céu, é estúpida, primitiva e bárbara. O Diabo, como indivíduo solitário, não
existe, mas uma alma má pode ser um diabo, e, nesse caso, há inúmeros
diabos. É esta fraternidade, de acordo
com os ensinamentos da igreja ortodoxa, que constitui o único elemento do
regresso do espírito.
Podemos nos dar ao luxo de
rir de tais absurdos. Temos senso de humor, e nos diverte às vezes ouvir algum
padre ignorante, espiritualmente cego, protestando conhecer as coisas
do espírito, as quais, na realidade, êle desconhece
totalmente. Os povos do espírito têm costas largas, e podem suportar o peso de
tais tolices sem experimentar nada a não ser piedade, por almas tão cegas.
Não é minha intenção entrar
em pormenores a respeito dessas esferas sombrias. Pelo menos por enquanto. O
método de a igreja assustar pessoas não é o método do mundo espiritual.
Preferimos nos deter nas belezas do mundo espiritual e tentar mostrar algo das
glórias que esperam cada alma que termina sua vida na terra. Depende de cada
uma, individualmente, o possuí-las mais cedo ou mais tarde.
Fizemos uma pequena consulta
e achamos que gostaríamos de voltar aos nossos reinos. Voltamos assim das
sombras, atravessando rapidamente as névoas e uma vez mais nos achamos em nosso
reino celestial, envolvidos em seu ar cálido. Achei que era tempo de dar uma
olhadela em minha casa, mas como não desejava me separar de Rute e Edwin,
pedi-lhes que me acompanhassem. Ela ainda não vira o meu lar, que muitas vezes
se havia perguntado como seria. E achei que algumas frutas do pomar, seriam
bem--vindas, depois daquela nossa jornada.
Tudo na casa estava em
perfeita ordem, como se alguém cuidasse dela permanentemente. Rute expressou
sua admiração por tudo o que viu e felicitou-me pela escolha.
Ao inquirir quem era
responsável pela boa ordem da casa durante a minha ausência, Edwin respondeu-me
com outra pergunta: — Que há aqui para perturbar-lhe a ordem? Não existe pó
porque não há destruição de forma alguma. Não há sujeira porque em espírito não
pode existir tal coisa. As obrigações domésticas tão conhecidas e enfadonhas na
terra, são aqui inexistentes. A necessidade de prover nosso corpo com alimento
foi esquecida quando deixamos de ser um corpo físico. Os adornos do lar, tais
como tapeçarias e cortinas, nunca necessitavam de ser removidos, visto que aqui
nada fenece. Duram até que os queiramos trocar por outros. Assim, o que resta
para exigir o nosso cuidado? Temos apenas que sair de nossas casas deixando
todas as portas e janelas abertas — não há fechaduras — e podemos voltar quando
bem quisermos, encontrando tudo como deixamos.
Podemos achar alguma
diferença, alguma melhoria. Podemos
descobrir, por exemplo, que enquanto estivemos fora algum amigo nos deixou um
mimo, flores talvez, ou qualquer outro sinal de amizade. Rute vagueara por toda a casa, só; como aqui
não temos formalidades estúpidas, disse-lhe que ficasse à vontade. O estilo antigo da arquitetura atraía a sua
natureza artística, e ela absorvia-se nos painéis e esculturas de madeiras do
passado. Daí a pouco atingiu a minha
biblioteca e ficou interessada em ver minhas próprias obras na estante. Um
livro em especial a atraiu e o estava folheando quando entrei. O título já por si revelava-lhe muito, disse
ela; pude então sentir sobre mim a força de toda sua simpatia; e como ela
conhecia a minha grande ambição, ofereceu-me toda ajuda possível para a sua
realização.
Assim que completou a
inspeção da casa, reunimo-nos na sala de estar e Rute indagou de Edwin uma
coisa que já havia me ocorrido: havia um mar algures? Se havia lagos e rios,
talvez devesse haver um oceano. A resposta encheu-a de alegria: é claro que
havia um mar, e muito bonito. Rute insistiu em vê-lo e para lá nos dirigimos,
sob a orientação de Edwin.
Em breve caminhávamos ao longo
de um maravilhoso trecho de campo aberto recoberto de grama, como um tapete de
veludo verde sob nossos pés. Não havia árvores, mas havia muitos agrupamentos
de arbustos, e é claro, uma profusão de flores por toda parte. Por fim subimos
a uma pequena elevação e senti que o mar devia estar além dela. De fato, ali
terminava o prado e logo em seguida estendia-se o mais lindo panorama que se
pode imaginar. Nunca tínhamos contemplado um mar tão maravilhoso. A coloração
era o mais perfeito reflexo do céu acima dele, e além disso, em cada ondazinha
rebrilhavam miríades de tonalidades do arco-íris. A superfície da água era
calma, mas não uma calma desprovida de vida. Aqui não há coisas tais como água
estagnada ou sem vida.
De onde estávamos, podiam-se
ver ilhas de considerável tamanho, ilhas que nos pareciam bem atraentes e que
devíamos visitar. Abaixo de nós estendia-se esplêndida faixa de praia e havia
muita gente sentada à beira da água, mas nem sombra de multidões se
acotovelando. Flutuando sobre a água, alguns, bem perto de nós, outros mais
distantes, estavam os mais lindos barcos — mas não creio estar-lhes fazendo
justiça ao chamá-los barcos. Navio seria mais apropriado. Ao perguntar a Edwin quem
poderia possuir tão belas embarcações, ele me respondeu que nós também as
poderíamos possuir, se as desejássemos. Os proprietários não tinham outra
moradia a não ser os barcos, onde podiam passar o ano todo, visto que aqui o
verão é eterno.
Uma pequena descida por um
caminho tortuoso nos levou à praia. Edwin informou-nos que era um mar sem marés
e não muito profundo, em comparação com o do mundo terrestre. Não existindo
tempestades aqui, a água é sempre plácida e, como as outras águas deste reino,
é de temperatura sempre morna e não oferece aos banhistas nenhuma sensação de
frio. Banhar-se nessas águas é experimentar uma perfeita manifestação de força
espiritual. A areia em que caminhávamos não tinha características
desagradáveis como as da terra. Não era cansativo andar sobre ela, e apesar de
ter a aparência comum, era macia ao tato. De fato, esta peculiaridade fazia-a
semelhante a um gramado bem tratado, tão unidos são
os seus grãos. Pegamos alguns punhados dessa areia e
deixamo-la correr entre os dedos; ficamos surpresos ao sentir que não deixava
as mãos ásperas, mas parecia mais um pó macio. Era um dos mais estranhos
fenômenos que já encontráramos,
mas Edwin observou que era apenas porque aqui nós
tínhamos feito um exame mais minucioso do que das outras coisas. Se fôssemos
fazer isso com tudo que vemos, com a terra sobre que caminhamos, com a
substância de que é feita a nossa casa, ou com os milhares de outros objetos
que podem formar o mundo do espírito, viveríamos em constante estado de surpresa. E mesmo assim ter-se-ia
revelado aos nossos olhos uma pequena idéia — apenas uma pequeníssima idéia —
da
magnitude da Grande Mente — da Maior Mente do Universo
— que mantém este e todos os outros mundos. Realmente, quando os cientistas da
terra aqui vêm viver, descobrem um mundo completamente novo, no qual têm que
começar novas pesquisas. Não perderam contudo aquela grande experiência
terrena. E que alegria ao compararem seus dados em companhia de seus colegas,
ao catalogarem novos conhecimentos, trabalharem em benefício de novas
descobertas.
Depois de apalparmos a areia
quisemos mergulhar nossas mãos no mar.
Rute esperava sentir gosto de sal, mas sua surpresa foi grande ao
verificar que tal não era verdade. Era mar apenas no nome, devido à quantidade
de areia, e às características das terras adjacentes. Sob todos os outros aspectos assemelhava-se
aos ribeirões e aos lagos. Na aparência geral o efeito de conjunto era
inteiramente diverso do oceano da terra, devido, entre outras coisas, ao fato
de não haver sol para dar-lhe apenas um quarto de luz e causar-lhe aquelas
mutações de aspectos quando êle muda de direção. Aqui a luz é espalhada uniformemente, de uma
fonte central, que é imutável e constante. Temos dia perpétuo, mas isso não
quer dizer que essa imobilidade se torne monótona. Há variações o tempo todo; mudanças de cores,
com que o homem jamais sonhara, e que só os olhos espirituais podem apreciar,
por serem olhos psíquicos.
Desejávamos muito visitar uma
das ilhas que se viam ao longe, e Rute achou que seria uma experiência
agradável viajar pelo mar numa daquelas esplêndidas embarcações próximas da
praia. Surgiu a dificuldade de como poderiam ser usadas, uma vez que eram
particulares; mas Edwin, ao ver a ansiedade de Rute, lembrou que um deles
pertencia a um amigo. Mesmo que assim não fosse seríamos bem-vindos a qualquer
um, bastando nos apresentar a quem se achasse a bordo — isto se quiséssemos
respeitar essa formalidade. Edwin chamou nossa atenção para um belo iate
ancorado perto da praia. Era de linhas graciosas, e prometia ser veloz e
possante.
Em resposta
à mensagem de Edwin, enviada através das águas, recebemos imediato convite para
subirmos a bordo, o que fizemos sem perda de tempo. Fomos recebidos com grande
alegria pelo proprietário que nos levou a conhecer sua esposa. Ela era encantadora e podia-se ver que ambos
formavam um par ideal. Sabedores de que éramos recém--chegados estavam ansiosos
por nos mostrar o barco.
Às primeiras observações
reparamos que faltavam muitos dos aparelhos e partes essenciais aos barcos da
terra. Coisas indispensáveis, como a âncora, por exemplo. Não havendo ventos,
correntes ou marés, nas águas espirituais, uma âncora é supérflua, apesar de
nos dizerem que alguns proprietários de barcos as possuem apenas como
ornamento, sem o qual não acham suas embarcações completas. Havia enorme espaço
no tombadilho, e uma copiosa provisão de confortáveis cadeiras. Embaixo, salões
bem decorados. Mas Rute estava desapontada por não ter deparado com nenhuma
evidência de força motriz para impelir a embarcação, e naturalmente concluiu
que o iate era incapaz de movimento independente. Eu partilhava seu
desapontamento, mas Edwin tinha um brilho malicioso no olhar, o que já me devia
ter feito ver que aqui as coisas não são como na terra. Nosso anfitrião. tinha
captado nossos pensamentos e imediatamente nos levou à casa do leme. Qual não
foi nosso espanto ao ver que estávamos nos afastando da praia, lenta e
suavemente! Os outros riam alegremente do nosso embaraço, e corremos para a
amurada para vermos o movimento na água. Não havia engano, estávamos de fato em
movimento, e aumentando a velocidade à medida que avançávamos. Retornamos à
casa do leme e solicitamos a explicação imediata daquele aparente passe de
mágica.
Continua próximo bloco V - Uma Visita
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